Muito além dos 12 tons: explorando as Riquezas da Música Microtonal

A música tem o poder de nos transportar para diferentes estados de espírito, evocar emoções e despertar nossa imaginação. Desde a antiguidade, nós humanos buscamos explorar e expandir os limites da música e talvez você esteja se perguntando, mas o que é isso de música microtonal? A música ocidental como a conhecemos é baseada em doze tons, que são as notas da escala temperada : dó, do#, ré, ré #, mi e assim por diante até completar toda a escala cromática que possui doze notas. No entanto, a música oriental faz uso de notas que situam-se entre as notas da escala cromática. Assim, entre o dó e o dó sustenido, temos infinitas frequências sonoras. Neste post, vamos explorar o fascinante mundo da microtonalidade musical, explicando o que é, comparando-a com a música ocidental. Vamos também mostrar alguns exemplos de seu uso em diferentes culturas ao redor do mundo.

O Que é Microtonalidade?

Para compreender a microtonalidade, primeiro vamos recapitular o sistema de afinação que utilizamos. Na música ocidental, usamos uma escala temperada, dividida em 12 tons iguais, chamados de semitons. Essa divisão igual permite uma ampla variedade de combinações de tons e acordes, mas também limita a precisão e a riqueza sonora. No piano, quando tocamos um ré bemol, ele tem o mesmo som do dó sustenido, porque a nota é afinada em uma frequência m´édia. Já no violino, por exemplo é possível perceber que dó sustenido e ré bemol não são a mesma nota. No entanto, se estamos dentro de uma mesma escala, temos 12 notas na escala cromática e a distância entre elas é de meio tom ou um semitom.

A microtonalidade, por outro lado, expande essa divisão em unidades menores do que um semitom. Os microtons são intervalos que representam frações do tom, permitindo uma maior flexibilidade e uma paleta sonora mais ampla. Isso significa que podemos acessar intervalos que não estão presentes na música ocidental tradicional, como quartos de tom, quintos de tom, etc.

Comparando Tons Temperados com Microtons

Para compreender melhor a diferença entre tons temperados e microtons, vamos usar um exemplo simples. Imagine uma escala de oito notas, semelhante à escala maior ocidental. Na música ocidental, cada nota é separada por um semitom. No entanto, na música microtonal, podemos dividir cada semitom em intervalos ainda menores.

Vamos supor que dividamos cada semitom em dois microtons. Agora, em vez de oito notas em nossa escala, teremos dezesseis, permitindo combinações de intervalos mais variados e complexos. Essa abordagem oferece uma liberdade criativa maior, permitindo que os compositores explorem uma ampla gama de nuances sonoras.

Exemplos de Música Microtonal em Outras Culturas

Agora que entendemos o conceito básico da microtonalidade, vamos explorar como ela é usada em diferentes culturas musicais ao redor do mundo. A cultura árabe, a israelense, a hindu e a chinesa fazem uso da microtonalidade em sua música. Cada cultura possui instrumentos próprios, em geral de corda ou sopro onde é possível trabalhar entre os tons.

A música árabe, por exemplo, é conhecida por seu uso de maqams, que são escalas modais microtonais. Cada maqam possui uma série de intervalos microtonais específicos, que criam uma sonoridade distinta e rica. O vídeo a seguir é um exemplo de música árabe que possui notas microtonais.

Na música indiana, especialmente a música clássica hindustani e a música carnática, também fazem uso extensivo de microtons. As ragas indianas, que são melodias tradicionais, são construídas com base em intervalos microtonais sutis e complexos. Cada raga tem uma combinação específica de intervalos microtonais, criando uma experiência sonora única.

O exemplo a seguir, mostra a melodia microtonal na música hindu. Tanto vocal quanto instrumental passeiam por entre os tons de forma natural, desvendando tanto a melodia quanto a harmonia da microtonalidade.

A música tradicional chinesa também incorpora a microtonalidade em sua prática musical. O sistema de afinação chinês, conhecido como “temperamento justificado”, possui intervalos microtonais que diferem dos tons temperados ocidentais. Esses microtons são utilizados para criar escalas e acordes distintos, conferindo uma sonoridade característica à música chinesa. Veja no exemplo a seguir uma mostra da música chinesa cuja tradução livre para o português é algo como Guzheng: Primavera, Rio e Flor em noite de lua.

A Importância Cultural e Criativa da Microtonalidade

A microtonalidade desempenha um papel fundamental na diversidade cultural e criativa da música em todo o mundo. Ao explorar intervalos microtonais, as tradições musicais podem expressar uma gama mais ampla de emoções e nuances sonoras, criando identidades musicais únicas.

Além disso, a microtonalidade também tem sido uma fonte de inspiração para compositores contemporâneos, que buscam expandir os limites da música e explorar novas possibilidades sonoras. Ao incorporar microtons em suas composições, eles desafiam as convenções musicais estabelecidas, abrindo caminho para uma experimentação sonora mais ampla e imaginativa.

A música microtonal nos leva a um território sonoro fascinante, onde intervalos sutis e complexos são explorados além dos limites da escala temperada ocidental. Essa abordagem enriquece a experiência musical, permitindo que diferentes culturas expressem suas identidades musicais únicas e incentivando a criatividade de compositores contemporâneos. Também nos desafia a expandir nossa percepção sonora e a explorar novas possibilidades musicais. Ela nos convida a sair da zona de conforto da escala temperada ocidental e a descobrir novos tons e matizes que podem nos surpreender e inspirar.

Portanto, ao ouvir uma melodia microtonal, esteja aberto e receptivo, permitindo-se ser transportado para um mundo sonoro diferente. Explore as nuances sutis dos intervalos microtonais e deixe-se envolver pela complexidade e pela beleza que eles têm a oferecer.

Microtonalidade na Música Ocidental

E na música ocidental? É possível encontrar a microtonalidade? De certa forma sim, ao usar instrumentos capazes de modular continuamente de uma nota a outra. Instrumentos de sopro podem fazer isso, ou quando um guitarrista faz um “bend” na corda durante o solo, ele está passando por microtons. No início da música Rhapsody in Blue Debut de George Gershwin, o clarinete faz um glissando indo de fá grave a si agudo, passando por todas as notas da escala. Dê uma olhada no início da música no vídeo a seguir.

No entanto, nestes exemplos, a música passa pelos microtons, mas não repousa sobre eles. Para que isso seja possível é preciso usar instrumentos em que seja possível tocar microtons, ou adaptá-los. Foi o que a banda australiana King Gizzard and the Lizard Wizard fez ao lançar seu álbum “Flying Microtonal Banana” que é escrita em escala de 24 notas ao invés de 12.

No vídeo a seguir você pode perceber que a guitarra tem mais divisões no braço do que as tradicionais. Essa modificação foi inspirada no instrumento turco blagama (veja figura a seguir). O guitarrista Stu Mckensie escreveu o álbum para ser tocado em sua guitarra microtonal.

Blagama Turca – Instrumento microtonal

Notação Musical da Música Microtonal

Mas como é feita a notação musical da música microtonal? Bem, há variações de acordo com cada cultura, além de como a escala está subdividida. No entanto, é possível adaptar a escrita usual e acrescentar microtons. veja na figura a seguir que alguns sinais de sustenidos apresentam uma ou três linhas verticais ao invés do usual que são duas linhas. Isso mostra que aquela nota está acima ou abaixo da nota, mas sem alcançar a próxima na escala cromática.

Também podemos criar acordes totalmente novos com estes intervalos microtonais. Levi Mclain mostra em um vídeo em seu canal do YouTube como podemos encontrar acordes que não são nem maiores e nem menores, mas estão entre eles como os acordes sub-menores e os acordes super-maiores. Parece estranho, e na verdade é para nós que estamos acostumados às convenções da música ocidental. A microtonalidade é um mundo completamente novo para nós ocidentais. No entanto, vale a pena conhecer e se quiser se aventurar por que não criar suas próprias composições microtonais?

Para Saber Mais

Microtonality in Western Music by David Benett – YouTube (Microtonality in Western Music – YouTube)

20-th Century Microtonal Notation – Gardner Read

Microtonalis: A systematic Approach to Microtonal Composition – Jones Jesse

Çifteli: This microtonal instrument changed the way I think about music bt David Hilowitz – YouTube (Çifteli: This microtonal instrument changed the way I think about music – YouTube)

How to make Microtonal Lo-Fi Hip Hop by Adam Neely – YouTube (How to make Microtonal Lo-Fi Hip Hop – YouTube)

O que é e para que serve o Contraponto.

Este post é para quem curte canto coral ou uma música com segunda voz.  Podemos definir contraponto como a arte de combinar duas ou mais vozes independentes e simultâneas. Johannes Tinctoris, músico que viveu de 1435 a 1511, definiu contraponto como uma moderada e razoável combinação produzida pela colocação de uma voz contra a outra. Em outras palavras, podemos chamar-lo simplesmente de contracanto. 

O contraponto é uma técnica antiga que teve sua origem na renascença e atingiu seu auge com as obras do compositor Johann Sebastian Bach durante o período barroco. No entanto, apesar de antiga, é muito usada por compositores modernos para harmonizar diferentes vozes sejam elas vocais ou instrumentais.

A História

O contraponto foi usado inicialmente para escrever arranjos vocais. Antes deles, o que havia eram canções em uníssono, ou monofônicas  chamadas de cantochão, isto é, não havia divisão de vozes, e as composições eram usadas em cantos eclesiásticos durante os  séculos III e IV. Mais tarde, por volta do século VI, o papa Gregório I, também conhecido como Gregório Magno, selecionou e sistematizou os cantos eclesiásticos que deram origem aos cantos gregorianos.

As primeiras músicas polifônicas, isto é, com duas ou mais linhas melódicas soando ao mesmo tempo, datam do século IX. Nesta época, os compositores começaram a realizar uma série de experimentos, incluindo uma ou mais linhas de vozes com o objetivo de acrescentar maior beleza e refinamento nas suas composições.

Estas primeiras tentativas duplicavam a melodia em intervalos de quarta ou quinta que acompanhavam a parte principal de forma paralela. Isto significa que, à medida que a melodia subia na escala, o contracanto também subia. este estilo primitivo era chamado de organum paralelo. Com o desenvolvimento de um contracanto mais elaborado, buscava-se exatamente o contrário, ou seja, evitar quintas, quarta e oitavas paralelas.

A Sistematização da Técnica

Quem primeiro organizou as normas de composições com contraponto foi o compositor vienense Johann Joseph Fux (1660-1741) com a publicação de sua obra Gradus ad Parnassum em 1725. Durante o classicismo, novas tendências vieram e a música instrumental ganhou importância, mas houve uma volta à homofonia dando início às óperas. De certa forma, houve uma grande retração na prática da música contrapontística. Por outro lado grandes compositores desta época como Mozart, Haydn e Beethoven usaram a polifonia como meio de expressão em suas obras.

Haydn em 1782 compôs Quartetos de Corda op. 33 que é considerada a reinvenção do contraponto clássico. Não apenas Haydn, mas também Mozart e Beethoven estudaram a obra de Fux.

Contraponto de Primeira Espécie

Neste tratado sobre o contraponto, Fux os divide em cinco espécies. Na primeira espécie temos nota contra nota. Isso significa que o contraponto segue a mesma métrica da melodia, que é chamada de cantus firmus. O exemplo a seguir mostra um contraponto de primeira espécie. Os números abaixo de cada compasso é o intervalo formado entre a voz mais grave e a mais aguda. Neste exemplo o cantus firmus está na clave de fá e é a voz mais grave.

Exemplo de contraponto de primeira espécie
Contraponto de Primeira Espécie

Veja que para cada nota do cantus firmus, neste caso escrita em semibreves, há outra semibreve com um intervalo entre elas. Nesta espécie apenas podem ser usadas consonâncias perfeitas que são as quintas e oitavas e consonâncias imperfeitas que são as terças e sextas. As quartas são consideradas dissonâncias, mas algumas escolas as consideravam consonâncias.

Contraponto de Segunda Espécie

Na segunda espécie, o contracanto tem o dobro da velocidade do cantus firmus. Então, para uma melodia escrita em semibreves, o contracanto será escrito em mínimas como o exemplo a seguir.

Exemplo de contraponto de segunda espécie
Contraponto de segunda Espécie

Neste exemplo, o cantus firmus está na voz mais grave e o contraponto na voz mas aguda, mas poderia ser o oposto.

 Contraponto de Terceira Espécie.

Já na terceira espécie, o contracanto move-se quatro vezes mais rápido que o cantus firmus. Isso significa que para um cantus firmus escrito em semibreves, teremos o contraponto escrito em semínimas como o exemplo a seguir.

Exemplo de contraponto de terceira Espécie
Contraponto de Terceira Espécie

Contraponto de Quarta Espécie

Na quarta espécie, o contraponto é cantado duas vezes mais rápido que o cantus firmus, da mesma forma que na segunda espécie, mas com uma diferença. Agora ele faz síncopes que é o prolongamento da última nota do compasso até o compasso seguinte. O exemplo a seguir exemplifica este tipo de contraponto.

Exemplo de contraponto de quarta espécie
Contraponto de Quarta Espécie

Contraponto de Quinta Espécie

O contraponto de quinta espécie é também chamado de florido e faz uso de todos os outros tipos de uma só vez. Ele  não introduz nenhum novo padrão rítmico. O que se pretende é trabalhar com combinações oriundas das outras espécies nos dando a possibilidade de enriquecer o arranjo com maior variedade. 

Exemplo de contraponto de quinta Espécie
Contraponto de Quinta Espécie

Estes são os cinco tipos de contraponto sistematizados por Fux. Carlos Almada em seu livro Contraponto em Música Popular, apresenta também o contraponto sem cantus firmus e aplica a teoria à música popular. Fux em seu trabalho apresenta a combinação de até três vozes. Os corais possuem em geral quatro vozes, que são o soprano, contralto, tenor e baixo, mas podem ter ainda vozes intermediárias como mezzo soprano, mezzo contralto, segundo tenor, terceiro tenor, barítonos, etc.

Contraponto Modal e Tonal

O contraponto apresentado por Fux é o contraponto modal, já que focava os modos eclesiásticos dos cantos sacros. Com o aparecimento do conceito de tonalidade e harmonia funcional, associados à invenção do piano que, ao contrário do cravo podia tocar nas 12 tonalidades ao invés de apenas uma e somados ainda ao aperfeiçoamento dos instrumentos musicais, surge o conceito de contraponto tonal. Ou seja, agora o contraponto não está baseado apenas no intervalo de consonâncias ou dissonâncias, mas também na relação harmônica, ou o acorde dado pela harmonia da música.

As regras do contraponto tonal passam a aceitar passagens musicais antes proibidas por formar intervalos dissonantes, mas agora se a nota faz parte do acorde em questão a regra para o seu uso vai depender também das relações harmônicas.

Uso da Teoria do Contraponto Modal na Composição para Corais

Se você tem interesse em compor para corais, ou simplesmente partir de uma melodia e abrir em vozes para um pequeno ou quem sabe até grandes grupos corais, vale a pena dar uma olhada no nosso post como compor arranjos para coral em quatro vozes, onde usamos apenas as regras do contraponto de primeira espécie para criar um arranjo para coral para a música Amazing Grace.