O que é e para que serve o Contraponto.

Este post é para quem curte canto coral ou uma música com segunda voz.  Podemos definir contraponto como a arte de combinar duas ou mais vozes independentes e simultâneas. Johannes Tinctoris, músico que viveu de 1435 a 1511, definiu contraponto como uma moderada e razoável combinação produzida pela colocação de uma voz contra a outra. Em outras palavras, podemos chamar-lo simplesmente de contracanto. 

O contraponto é uma técnica antiga que teve sua origem na renascença e atingiu seu auge com as obras do compositor Johann Sebastian Bach durante o período barroco. No entanto, apesar de antiga, é muito usada por compositores modernos para harmonizar diferentes vozes sejam elas vocais ou instrumentais.

A História

O contraponto foi usado inicialmente para escrever arranjos vocais. Antes deles, o que havia eram canções em uníssono, ou monofônicas  chamadas de cantochão, isto é, não havia divisão de vozes, e as composições eram usadas em cantos eclesiásticos durante os  séculos III e IV. Mais tarde, por volta do século VI, o papa Gregório I, também conhecido como Gregório Magno, selecionou e sistematizou os cantos eclesiásticos que deram origem aos cantos gregorianos.

As primeiras músicas polifônicas, isto é, com duas ou mais linhas melódicas soando ao mesmo tempo, datam do século IX. Nesta época, os compositores começaram a realizar uma série de experimentos, incluindo uma ou mais linhas de vozes com o objetivo de acrescentar maior beleza e refinamento nas suas composições.

Estas primeiras tentativas duplicavam a melodia em intervalos de quarta ou quinta que acompanhavam a parte principal de forma paralela. Isto significa que, à medida que a melodia subia na escala, o contracanto também subia. este estilo primitivo era chamado de organum paralelo. Com o desenvolvimento de um contracanto mais elaborado, buscava-se exatamente o contrário, ou seja, evitar quintas, quarta e oitavas paralelas.

A Sistematização da Técnica

Quem primeiro organizou as normas de composições com contraponto foi o compositor vienense Johann Joseph Fux (1660-1741) com a publicação de sua obra Gradus ad Parnassum em 1725. Durante o classicismo, novas tendências vieram e a música instrumental ganhou importância, mas houve uma volta à homofonia dando início às óperas. De certa forma, houve uma grande retração na prática da música contrapontística. Por outro lado grandes compositores desta época como Mozart, Haydn e Beethoven usaram a polifonia como meio de expressão em suas obras.

Haydn em 1782 compôs Quartetos de Corda op. 33 que é considerada a reinvenção do contraponto clássico. Não apenas Haydn, mas também Mozart e Beethoven estudaram a obra de Fux.

Contraponto de Primeira Espécie

Neste tratado sobre o contraponto, Fux os divide em cinco espécies. Na primeira espécie temos nota contra nota. Isso significa que o contraponto segue a mesma métrica da melodia, que é chamada de cantus firmus. O exemplo a seguir mostra um contraponto de primeira espécie. Os números abaixo de cada compasso é o intervalo formado entre a voz mais grave e a mais aguda. Neste exemplo o cantus firmus está na clave de fá e é a voz mais grave.

Exemplo de contraponto de primeira espécie
Contraponto de Primeira Espécie

Veja que para cada nota do cantus firmus, neste caso escrita em semibreves, há outra semibreve com um intervalo entre elas. Nesta espécie apenas podem ser usadas consonâncias perfeitas que são as quintas e oitavas e consonâncias imperfeitas que são as terças e sextas. As quartas são consideradas dissonâncias, mas algumas escolas as consideravam consonâncias.

Contraponto de Segunda Espécie

Na segunda espécie, o contracanto tem o dobro da velocidade do cantus firmus. Então, para uma melodia escrita em semibreves, o contracanto será escrito em mínimas como o exemplo a seguir.

Exemplo de contraponto de segunda espécie
Contraponto de segunda Espécie

Neste exemplo, o cantus firmus está na voz mais grave e o contraponto na voz mas aguda, mas poderia ser o oposto.

 Contraponto de Terceira Espécie.

Já na terceira espécie, o contracanto move-se quatro vezes mais rápido que o cantus firmus. Isso significa que para um cantus firmus escrito em semibreves, teremos o contraponto escrito em semínimas como o exemplo a seguir.

Exemplo de contraponto de terceira Espécie
Contraponto de Terceira Espécie

Contraponto de Quarta Espécie

Na quarta espécie, o contraponto é cantado duas vezes mais rápido que o cantus firmus, da mesma forma que na segunda espécie, mas com uma diferença. Agora ele faz síncopes que é o prolongamento da última nota do compasso até o compasso seguinte. O exemplo a seguir exemplifica este tipo de contraponto.

Exemplo de contraponto de quarta espécie
Contraponto de Quarta Espécie

Contraponto de Quinta Espécie

O contraponto de quinta espécie é também chamado de florido e faz uso de todos os outros tipos de uma só vez. Ele  não introduz nenhum novo padrão rítmico. O que se pretende é trabalhar com combinações oriundas das outras espécies nos dando a possibilidade de enriquecer o arranjo com maior variedade. 

Exemplo de contraponto de quinta Espécie
Contraponto de Quinta Espécie

Estes são os cinco tipos de contraponto sistematizados por Fux. Carlos Almada em seu livro Contraponto em Música Popular, apresenta também o contraponto sem cantus firmus e aplica a teoria à música popular. Fux em seu trabalho apresenta a combinação de até três vozes. Os corais possuem em geral quatro vozes, que são o soprano, contralto, tenor e baixo, mas podem ter ainda vozes intermediárias como mezzo soprano, mezzo contralto, segundo tenor, terceiro tenor, barítonos, etc.

Contraponto Modal e Tonal

O contraponto apresentado por Fux é o contraponto modal, já que focava os modos eclesiásticos dos cantos sacros. Com o aparecimento do conceito de tonalidade e harmonia funcional, associados à invenção do piano que, ao contrário do cravo podia tocar nas 12 tonalidades ao invés de apenas uma e somados ainda ao aperfeiçoamento dos instrumentos musicais, surge o conceito de contraponto tonal. Ou seja, agora o contraponto não está baseado apenas no intervalo de consonâncias ou dissonâncias, mas também na relação harmônica, ou o acorde dado pela harmonia da música.

As regras do contraponto tonal passam a aceitar passagens musicais antes proibidas por formar intervalos dissonantes, mas agora se a nota faz parte do acorde em questão a regra para o seu uso vai depender também das relações harmônicas.

Uso da Teoria do Contraponto Modal na Composição para Corais

Se você tem interesse em compor para corais, ou simplesmente partir de uma melodia e abrir em vozes para um pequeno ou quem sabe até grandes grupos corais, vale a pena dar uma olhada no nosso post como compor arranjos para coral em quatro vozes, onde usamos apenas as regras do contraponto de primeira espécie para criar um arranjo para coral para a música Amazing Grace.

O que é substituição diatônica ou rearmonização

Pense em uma música que você considere trivial e em geral é tocada com apenas três acordes. Agora imagine o Tom Jobim tocando esta música usando todas os acordes do campo harmônico daquela tonalidade. Isso é o que chamamos de rearmonização, onde diferentes acordes do campo harmônico podem assumir a função de tônica, subdominante dominante.

Função Harmônica

Deixe-me tentar explicar sem entrar nos detalhes da harmonia funcional. Ao tocar uma música usamos basicamente três funções: a tônica, a dominante e a subdominante. A tônica dá a sensação de estabilidade,  a subdominante é um afastamento desta estabilidade e a dominante gera uma tensão de total instabilidade na música. Qualquer afastamento da tônica gera uma expectativa que pede resolução e esta resolução se dá sobre a tônica. Desta forma, se estamos em dó maior, o acorde de dó maior é a nossa tônica, o acorde de fá maior é a nossa subdominante e o acorde de sol com sétima a nossa dominante. Usamos os graus da escala para que possamos aplicar o conceito a todas as doze tonalidades da música ocidental. Para isso usamos os algarismos romanos para descrever cada grau.Assim, a tônica ou I é o primeiro grau, a subdominante ou IV é o segundo grau e a dominante ou V é o quinto grau.

Exemplo

No exemplo a seguir mostramos o afastamento da tônica indo para a subdominante, depois resolvendo na tônica e depois saindo da tônica indo para a dominante e resolvendo novamente na tônica. Ouça e perceba a tensão e a expectativa gerada quando saímos de dó maior e vamos para fá maior. Sentimos que falta algo  e então quando tocamos a tônica de novo temos um alívio de voltar pra casa. Agora perceba como esta tensão é maior ao tocar a dominante, que é o acorde de sol com sétima , ou o quinto grau da escala de dó maior. Neste caso, a tensão é ainda maior e novamente sentimos o alívio da resolução em dó maior.

Progressão Harmônica I- IV -I & I – V – I

A música é feita de progressões harmônicas onde exploramos as tensões e resoluções a todo o tempo.

A Substituição diatônica

A substituição diatônica nada mais é que substituir as notas do acorde por outra dentro da mesma tonalidade e que assuma a função da anterior. Assim, se estou tocando a tônica o novo acorde vai assumir a função de tônica, se estiver tocado a dominante, o acorde substituto assumirá a função de dominante e assim sucessivamente.

Mas como saber quais notas possuem a mesma função? Bem, o primeiro passo é identificar qual a função harmônica de cada acorde. Em seguida, identifique quais são os acordes relativos e anti-relativos. Vamos explicar então como encontrá-los.

Cada acorde possui acordes vizinhos chamados de relativos e outro anti-relativos que possuem notas em comum e podem ser usados como substitutos.

Pense no acorde de dó maior que é formado pelas notas dó, mi e sol. Agora monte um acorde que esteja uma terça abaixo. Temos então as notas lá, dó e mi que formam o acorde de lá menor. Perceba que o acorde de dó maior e o acorde de lá menor têm em comum duas notas o dó e o mi. Além disso, lá é o sexto grau da escala de dó maior e recebe o nome de escala relativa menor, então lá menor é relativo de dó maior. Para aplicar a qualquer tom, basta encontrar a sexta da escala. Ou seja o relativo de ré maior é si menor, o de Lá maior é fá sustenido menor e assim sucessivamente. Dê uma olhada no nosso post sobre acordes relativos se ainda ficou com dúvidas. 

Mas e o anti-relativo? Basta ir para o outro lado e encontrar o acorde uma terça acima do dó maior que é o mi menor, ou seja o terceiro grau menor da escala. Da mesma forma o anti relativo de ré maior é fá sustenido menor e o de lá maior é o dó sustenido menor.

Rearmonizando

Vamos ver um exemplo de uma música bem básica: Marcha soldado com apenas dois acordes, sendo a tônica e a dominante.Vamos então identificar as funções dos acordes que atuam como tônica e dominante. Na partitura da música a seguir vemos  que estamos no tom de fá maior, então nossa tônica é o fá maior (F) e a nossa dominante é a quinta com a sétima, ou seja, o dó com sétima (C7).

Partitura da canção Marcha soldado mostrando função harmônica da tônica e da dominante.
Canção Folclórica Marcha soldado mostrando funções harmônicas da Tônica e da Dominante.

Uma vez então definidas as funções dos acordes em cada compasso da música, vamos fazer as substituições. Para isso, vamos escolher os acordes do campo harmônico de fá maior. Se você não leu ainda o post sobre campos harmônicos, dá uma olhada tanto nos campos harmônicos maiores que é o nosso caso aqui, mas também veja o post sobre os campos harmônicos menores.

Campo Harmônico

Os acordes do campo harmônico maior segue a sequência a seguir:

I7M, IIm7, IIIm7, IV7M, V7, VIm7 e VII75b (meio diminuto). Desta forma, para o tom de fá maior temos: F7M, Gm7, Am7, Bb7M, C7, Dm7 e  Em75b.

Para a tônica, já vimos que a relativa é a sexta menor e a anti-relativa é a terça menor que no nosso caso são os acordes de Dm7 ( relativo de F7M) e Am7 ( anti-relativo de F7M). Para substituir a dominante que é C7 devemos buscar o relativo de dó maior que é mi menor e no nosso campo harmônico é o acorde de mi meio diminuto ou mi menor com sétima e quinta diminuta (Em75b). Outra opção seria o acorde anti-relativo de C7 que é o Am7. Com base nestas informações decidimos as substituições de acordo com o arranjo que estamos compondo. A seguir deixo minha rearmonização para a música marcha soldado.

Partitura da canção folclórica Marcha Soldado rearmonizada usando subistituição diatônica.
Canção Folclórica Marcha Soldado Rearmonizada

No vídeo a seguir você pode ouvir as duas versões da música marcha soldado. A primeira na forma original com apenas 2 acordes e a segunda versão já rearmonizada diatonicamente.

Vídeo mostrando versão original e rearmonizada da canção Marcha Soldado